sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Caso Battisti

Com o anunciado fim do caso Battisti, cujo capítulo derradeiro foi a negação do pedido extradicional pelo Presidente Lula no último dia do ano, posto a sustentação oral feita pelo advogado Luís Roberto Barroso, professor e constitucionalista de renome, cotado, por diversas vezes, a assumir uma cadeira no STF. Aos ligados ao Direito, fica uma aula de retórica e de advocacia.


Veja abaixo o texto de Dalmo Dallari sobre o caso:



SOLTURA IMEDIATA DE BATTISTI: PRISÃO SEM OBJETO
Dalmo de Abreu Dallari
A legalidade da decisão do Presidente Lula, negando a extradição de Cesare Battisti pretendida pelo governo italiano, é inatacável. O Presidente decidiu no exercício de suas competências constitucionais, como agente da soberania brasileira e a fundamentação de sua decisão tem por base disposições expressas do tratado de extradição assinado por Brasil e Itália. É interessante e oportuno assinalar que as reações violentas e grosseiras de membros do governo italiano, agredindo a dignidade do povo brasileiro e fugindo ao mínimo respeito que deve existir nas relações entre os Estados civilizados, comprovam o absoluto acerto da decisão do Presidente Lula.
Quanto à prisão de Battisti, que já dura quatro anos, é de fundamental importância lembrar que se trata de uma espécie de prisão preventiva. Quando o governo da Itália pediu a extradição de Battisti teve início um processo no Supremo Tribunal Federal, para que a Suprema Corte verificasse o cabimento formal do pedido e, considerando satisfeitas as formalidades legais, enviasse o caso ao Presidente da República. Para impedir que o possível extraditando fugisse do País ou se ocultasse, obstando o cumprimento de decisão do Presidente da República, concedendo a extradição, o Presidente do Supremo Tribunal Federal determinou a prisão preventiva de Battisti, com o único objetivo de garantir a execução de eventual decisão de extraditar. Não houve qualquer outro fundamento para a prisão de Battisti, que se caracterizou, claramente, como prisão preventiva.
O Presidente da República acaba de tomar a decisão final e definitiva, negando atendimento ao pedido de extradição, tendo considerado as normas constitucionais e legais do Brasil e o tratado de extradição firmado com a Itália. Numa decisão muito bem fundamentada, o Chefe do Executivo deixa claro que teve em consideração os pressupostos jurídicos que recomendam ou são impeditivos da extradição. Na avaliação do pedido, o Presidente da República levou em conta todo o conjunto de cirscunstâncias políticas e sociais que compõem o caso Battisti, inclusive os antecedentes do caso e a situação política atual da Itália, tendo considerado, entre outros elementos, os recentes pronunciamentos violentos e apaixonados de membros do governo da Itália com referência a Cesare Battisti. E assim, com rigoroso fundamento em disposições expressas do tratado de extradição celebrado por Brasil e Itália, concluiu que estavam presentes alguns pressupostos que recomendavam a negação do pedido de extradição. Decisão juridicamente perfeita.
Considere-se agora a prisão de Battisti. Ela foi determinada com o caráter de prisão preventiva, devendo perdurar até que o Presidente da República desse a palavra final, concedendo ou negando a extradição. E isso acaba de ocorrer, com a decisão de negar atendimento ao pedido de extradição. Em consequência, a prisão preventiva de Cesare Battisti perdeu o objeto, não havendo qualquer fundamento jurídico para que ele continue preso. E manter alguém preso sem ter apoio em algum dispositivo jurídico é abolutamente ilegal e caracteriza extrema violência contra a pessoa humana, pois o preso está praticamente impossibilitado de exercer seus direitos fundamentais. Assim, pois, em respeito à Constituição brasileira, que define o Brasil como Estado Democrático de Direito, Cesare Battisti deve ser solto imediatamente, sem qualquer concessão aos que tentam recorrer a artifícios jurídicos formais para a imposição de sua vocação arbitrária. O direito e a justiça devem prevalecer.

sábado, 23 de outubro de 2010

Tráfico de entorpecentes e conversão de pena II

O STF, por ocasião do julgamento do HC 97.256/RS, Rel. Min. Ayres Britto, (Informativo nº. 604), reconheceu a possibilidade de conversão de pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Dessa vez, trago um trecho da decisão que considero relevante, em termos hermenêuticos.

"23. Daqui se deduz que a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinqüente a sanção criminal que a ele, juiz, se afigurar como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação (mandado de otimização, diria Ronald Dworkin) de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto - porque não dizer? - a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional. É que a pura racionalidade se dá nos colmos olímpicos da abstração mental, sempre ávida por trabalhar com categorias tão universais quanto atemporais, que são categorias aprioristicamente válidas para toda e qualquer situação existencial. Diferentemente do juízo de razoabilidade, que toma em linha de conta o contexto ou a contingência das protagonizações humanas. Atenta à elementar consideração de que o Direito é feito para a concreta vida dos homens em sociedade, e o fato é que a concreta vida dos homens em sociedade escapa até mesmo à mais circunstanciada ou minudente descrição legislativa. Regida que é, tal como na particularizada esfera dos fenômenos quânticos, pelos princípios da complementariedade e da incerteza - para lembrar a conhecida categorização de Heizemberg. Ou como no Século V antes de Cristo sentenciava Heráclito: o ser das coisas é o movimento (e as coisas ditas humanas não fogem à regra). Por isso que só o impermanente é que é permanente; somente o inconstante é que é constante, porque tudo muda incessantemente, menos a incessante mudança.

24. Em suma, estamos a falar de uma necessária ponderação em concreto, ditada pelo permanente esforço do juiz para conciliar segurança jurídica e justiça material. Segurança e justiça que figuram desde o preâmbulo da Magna Carta Federal entre os valores de pronto qualificados como valores supremos de uma sociedade pluralista, fraterna e sem preconceitos. Saltando aos olhos que é esse tipo de sociedade que se põe como base de inspiração do princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º) e, pour cause, do advento de um sistema de direito penal humanista.

25. Noutro modo de falar sobre a mesma coisa, o momento sentencial da dosimetria da pena não significa senão a imperiosa tarefa individualizadora de transportar para as singularidades objetivas e subjetivas do caso concreto - a cena empírico-penal, orteguiana por definição - os comandos genéricos, impessoais e abstratos da lei. Vale dizer, nessa primeira etapa da concretude individualizadora da reprimenda (a segunda etapa concreta já se dá intramuros penitenciários), o juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de restrição da liberdade de condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado. Sem prejuízo, claro, da proposição de que a lei, se não pode fechar para o julgador a porta da alternatividade sancionatório-penal, pode prever a cumulação da pena que tenha por conteúdo a liberdade com outra desprovida de tal natureza. Como, por hipótese, a pena de perda de bens e a multa, ambas perfeitamente compatíveis com o seu adicionamento à perda ou então à constrição da liberdade da pessoa natural".

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O decidir conforme a consciência. "Ainda há juízes em Berlim?"

A diferença entre o Ministro do STJ, Humberto Gomes de Barros, e a grande parcela dos magistrados brasileiros, fica entre o dito e o não dito. Ou, para ser mais direto, entre assumir-se, expressamente (ou não) bastante a si mesmo (solipsista). Para facilitar este afirmação, veja-se o seguinte pronunciamento do mencionado Ministro:

Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da ConstituiçãoFederal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O positivismo de Hart - Grupo de estudos

Gostaria de experimentar lermos algo juntos. Para começar, escolhi um capítulo de O Conceito de Direito do Hart. Para quem ainda não sabe, uma pergunta central em Filosofia do Direito é: o que confere validade a uma norma? Tradicionalmente, há duas respostas:



        - teoria do direito natural (ou jusnaturalismo): a lei válida é a lei justa. O que pressupõe duas afirmações: há uma conexão necessária entre direito e moral, certas leis jurídico-morais existem independentemente dos seres humanos. 

        - positivismo (ou juspositivismo): a lei válida é a que está de acordo com certos fatos ou regras sociais. A validade e o conteúdo da lei não dependem do seu mérito, mas de certos fatos sociais (por quem foi feita, como foi feita, como foi aplicada etc. Em outras palavras, se o legislador, o juiz etc. são legítimos). O que pressupõe que direito e moral são independentes e que toda lei é criação humana.

O principal problema do direito natural é ser muito impreciso e por isso levar a um sistema jurídico instável (como definir o que é justo?). Por outro lado, o problema do positivismo é que alguns dizem que ele permitiu a existência de regimes políticos como o stalinismo, o fascismo e o nazismo, pois muitas das atrocidades cometidas por esses regimes estavam de acordo com sua legislação. 

Hoje em dia há uma corrente que procura corrigir os erros dessas linhas, que é chamada de pós-positivismo,  e cujo principal representante é Dworkin. Esse autor criou suas teses no final dos anos setenta discutindo com Hart, que escreveu nos anos sessenta. Por isso proponho começarmos lendo Hart (e também porque ele é muito rico e uma aula sobre como escrever!). 


Em resumo, um bom objetivo para nos colocarmos é saber como determinar a validade das normas (uma lei injusta é válida? A desobediência civil é um crime como outro qualquer? O download de músicas, os abortos clandestinos etc. são crimes como quaisquer outros?). Para chegar a essa resposta é preciso decidir entre Hart e Dworkin. É isso que proponho. Quem sabe um dia poderemos chegar a discutir MacCormick e Raz e outras formulações do positivismo que tentar ir ainda além desses autores e parecem desconhecidos dos juristas brasileiros?

Prof. Lincoln Frias

sábado, 11 de setembro de 2010

Judicialização da Saúde

Nesta página serão listados alguns artigos relevantes sobre o tema da Judicialização do Direito à saúde, que servirão para estudo e referencial teórico.

MARQUES, Silvia Badim; DALLARI, Sueli Gandolfi. Garantia do direito social à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Rev. Saúde Pública,  São Paulo ,  v. 41, n. 1, fev.  2007 .   Disponível em . acessos em  09  fev.  2014.  http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102007000100014.

sábado, 4 de setembro de 2010

Tráfico de entorpecentes e conversão de pena


Canal do STF, no Youtube

           
            Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se, em vias de controle difuso, pela inconstitucionalidade do art. 33, §4º e art. 44, ambos da Lei de Drogas (Lei nº. 11.343/06), no que se refere à vedação à conversão da pena em restritiva de direitos. Assentou-se, assim, que nos casos em que a conduta do indivíduo se insere na causa especial de diminuição de pena inscrita no art. 33, §4º, da referida lei, por muitos denominado de tráfico privilegiado, a mencionada vedação não se mostra condizente com o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CR/88).
            O princípio da proporcionalidade, panaceia cada vez mais utilizada no cenário jurídico brasileiro, ora adequadamente, ora nem tanto, tem se mostrado como ferramenta hábil à solução de determinados casos, mormente dos denominados hard cases (se é que importa, realmente, tal denominação[1]).
            Como desdobramento de tal princípio, pode-se extrair a regra da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot), utilizada pela Corte Constitucional alemã[2]. Assim, com relação a determinados bens jurídicos, mormente penais, o constituinte, ao buscar garantir aqueles mais importantes ao convívio social, impõe que os Poderes da República também busquem sua efetiva garantia.
            Assim, não resta dúvida de que o constituinte teve por intenção conferir tratamento mais severo ao delito de tráfico (art. 5º, XLIII). Todavia, o legislador ao inserir na Lei de Drogas a já mencionada causa especial de diminuição de pena, possibilitando que a sanção alcance a zona dos crimes de menor potencial ofensivo, já demonstrou certa deficiência na proteção do bem jurídico indicado pela própria Lei Fundamental.
            De modo semelhante, parece notório que o STF, olvidando da faceta positiva do garantismo penal, caminha na mesma intenção do legislador, ao considerar inconstitucional a vedação à conversão da pena restritiva de liberdade. Logo, cabe a pergunta: o STF, a quem cabe a guarda da Constituição, não deveria seguir o caminho proposto pelo constituinte de 1988, que optou literalmente pela maior punição ao crime tráfico ilícito de entorpecentes?



[1] Conferir, a esse respeito: Capítulo 10, “A indevida distinção estrutural entre easy cases e hard cases e as consequências hermenêuticas”, in STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009.
[2] Sobre a recepção brasileira da doutrina constitucional alemã, ver SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In Interpretação Constitucional. Organizador: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2005.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Judicialização & Separação de Poderes






Há algum tempo me dedico ao estudo do tema da judicialização da saúde. Embora pareça um assunto de fácil discussão, algumas questões não podem ser deixadas de lado, como, por exemplo, o modo como o Judiciário deverá interpretar os dispositivos dos quais se extraem o direito à saúde (art. 6º e 196 da CR/88, especialmente).

Partindo do pressuposto de que é possível ao magistrado determinar o fornecimento de medicamentos ou de tratamentos pelo Estado (o que reflete uma posição substancialista[1] da Constituição e da própria jurisdição constitucional), um dos pontos que julgo mais importante sobre o tema diz respeito a uma questão básica (ou nem tanto) no Direito, a hermenêutica jurídica. Ou seja, como deve o magistrado proceder (e fundamentar adequadamente sua decisão) na efetivação do direito fundamental social mencionado sem afetar a independência e harmonia entre os Poderes da República, já que a concretização do direito à saúde cabe, a priori, ao Executivo, por meios de políticas públicas. A esse respeito, vale conferir a posição adotada pelo Min. do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, recentemente explicitada no II Seminário sobre o Terceiro Setor e Parcerias na área de saúde, segundo o noticiado pelo Conjur:

“Mesmo sendo franqueado ao Poder Judiciário, não existe separação entre os Poderes para garantir o direito à saúde, por meio de fornecimentos de medicamento ou de tratamento imprescindível para o aumento de sobrevida e a melhoria da qualidade de vida de determinado paciente”


[1] Sobre a discussão entre procedimentalismo e substancialismo, conferir artigo de Lenio Streck, intitulado “La jurisdicción constitucional y las posibilidades de concretización de los derechos  fundamentales-sociales”, disponível aqui.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Direito à Saúde - Reserva do Possível - “Escolhas Trágicas” - Omissões Inconstitucionais - Políticas Públicas - Princípio que Veda o Retrocesso Social (STA 175-AgR/CE) Informativo 582, STF

Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.

(STA 175 AgR, Relator: Min. Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2010, DJe-076 Divulg. 29/04/2010. Public. 30/04/2010.)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aula Magna - Interpretação & Hermenêutica Jurídica


Tema: "Hermenêutica e Decisão Jurídica", com o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul Lenio Luiz Streck. Ele inicia a palestra tratando da distinção do assunto quanto à argumentação jurídica. O procurador acrescenta que a hermenêutica é vista por ele como um instrumento filosófico e não mercadológico. O palestrante faz um retrospecto da evolução histórica da hermenêutica, mostrando desde como se interpreta a como se aplica o valor da pré--compreensão, e avança nas questões que envolvem a hermenêutica e os mitos do direito até chegar à hermenêutica jurídica.


Nesta Aula Magna, você confere a explanação do mestre em direito e professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Luís Roberto Barroso sobre o tema "Interpretação Constitucional e Seus Aspectos da Interpretação Tradicional". O renomado constitucionalista utiliza exemplos de legislações internacionais, onde se observa os diversos pontos de vista em que uma situação pode ser relacionada. Segundo ele, essa variedade de opiniões atribui ao direito a característica de relatividade em suas ações.


Na Aula Magna desta edição, você confere um seminário proferido pelo professor Inocêncio Mártires Coelho, doutor em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e presidente e docente do Instituto Brasiliense do Direito Público (IDP). Neste programa o tema abordado é "hermenêutica". O palestrante explica como e quando ela se dá na esfera do pensamento humano. Seguindo essa linha, Coelho argumenta ainda quanto ao pensar jurídico, que, para ele, deve ser aplicado de maneira setorizada.

Vídeos do Canal do STF no Youtube.

quarta-feira, 7 de julho de 2010


'"Essa Constituição desperta em todos nós sentimentos de admiração, reverência e gratidão. E, se queremos ser gratos à Constituição que tanto nos prestigiou como profissionais do Direito, devemos cultuá-la no nosso dia a dia profissional. E é fácil cultuar a Constituição: basta que tenhamos a disposição de interpretrá-la com o pensamento e com o sentimento', afirmou. Ayres Britto disse que a Carta Magna é do povo enquanto está sendo elaborada, mas depois de promulgada, é tomada pelos juristas e pelos operadores do Direito. Por isso, defendeu que o povo seja mais ouvido, por meio de audiências públicas"

Imagem: A dama da Justiça, de Alessandro S. de Souza.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

"Yo no soy más que un mendigo del buen fútbol. Voy por el mundo, sombrero en la mano, y en los estadios suplico: una linda jugadita, por amor de Dios. Y, cuando el buen fútbol ocurre, agradezco el milagro, sin que me importe un rábano cual es el club o el país que me lo ofrece." (Eduardo Galeano, citado por Adauto Suannes, em "Jabulani 3, goleiros 0")

Imagem:Futebol de Várzea, de Emmanuel Pinheiro

segunda-feira, 7 de junho de 2010

CONSTITUCIONALISMO NO BRASIL EM TEMPOS DE PÓS-POSITIVISMO: uma abordagem à luz do princípio da dignidade da pessoa humana

Nairo José Borges Lopes

1 INTRODUÇÃO


          A ordem constitucional inaugurada em 1988 foi um marco não somente sob o prisma jurídico, mas também filosófico e histórico. A redemocratização do Brasil, ainda que tardia, soprou na sociedade ares de esperança, mostrando que a democracia poderia ser o ambiente para se viver com dignidade, paz e, possivelmente, direitos efetivados.
          Esse novo episódio do constitucionalismo brasileiro introduziu no cenário jurídico inúmeras discussões envolvendo, sobretudo, o papel da Constituição Federal, a efetividade dos direitos fundamentais de segunda dimensão, a necessidade da (re)discussão da hermenêutica jurídica, com a criação/importação de novos métodos e princípios de interpretação, dentre diversas outras questões de grande valia na busca pela eficácia social das normas constitucionais.
          Diante desse novo modelo, o positivismo normativista kelseniano mereceu, necessariamente, nova análise, em vista da positivação de princípios constitucionais de notória carga axiológica. Este novo ideário marca, enfim, a reaproximação entre o Direito e a ética.
          Partindo dessas premissas, o presente trabalho busca expor as bases do constitucionalismo brasileiro inaugurado em 1988, trazendo, ainda, as principais contribuições da doutrina pós-positivista. Com o fito de melhor clarificar a discussão proposta, analisar-se-á a importância da positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, cuja inserção nos documentos constitucionais consagra e identifica o constitucionalismo do segundo pós-guerra.


2 DO NEOCONSTITUCIONALISMO NO BRASIL
2.1 Considerações iniciais

          O constitucionalismo, tal como hoje compreendido, tem seu início no século XVIII. De moldes liberais, tratou eminentemente de declarar os direitos humanos de primeira dimensão e delimitar o âmbito de atuação do Estado por meio da separação de poderes, introduzindo na história o paradigma de Estado Liberal. Segundo Comparato (2010, p. 63), o Estado liberal-burguês foi “a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero e a nobreza - e tornar o governo responsável perante a classe burguesa”.
          Em decorrência de fatores diversos, a pouca intervenção do Estado Liberal nas relações privadas gerou a pauperização da classe trabalhadora, que era explorada avassaladoramente por aqueles que detinham o poder econômico e, por tal razão, estabeleciam ao seu alvedrio as condições de trabalho[1]. Ainda conforme Comparato (2010, p. 66),

o resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e por provocar a indispensável organização da classe trabalhadora.

          Com a crise engendrada pelo Estado Liberal[2] e em decorrência dos movimentos socialistas a partir do século XIX, o Estado passa a intervir nas relações privadas, reduzindo o âmbito de autonomia individual, a fim de evitar a exploração do homem. Surge assim o Estado Social de Direito (ou Welfare State).
          Esse novo modelo de organização política teve por escopo superar o individualismo e a isonomia formal reinantes no Estado Liberal, buscando, para tanto, o implemento de instrumentos que garantissem condições mínimas de subsistência por meio da promoção da igualdade material e da realização da justiça social. O caminho para concretizar o ideal de bem-estar proposto pelo Estado Social seria trilhado pela concretização dos direitos de segunda dimensão, que, indubitavelmente, foi a principal herança deixada pelo constitucionalismo (social) inaugurado nesse período[3].
          No Brasil, pode-se dizer que o constitucionalismo seguiu os mesmos passos dos movimentos que se difundiram pelo mundo, com algumas ressalvas concernentes a aspectos temporais e políticos. A bem da verdade, a história constitucional brasileira demonstra que o constitucionalismo social chegou ao Brasil somente na Constituição de 1934[4], na tentativa de se construir um Estado com olhos voltados à questão social dos trabalhadores.
          Sem êxito, a Constituição de 1934 relegou ao plano das promessas a tarefa de se efetivar os direitos sociais[5], cabendo, como o tempo incumbiu-se de demonstrar, ao Estado Democrático de Direito a tarefa de assegurar a efetividade de determinados direitos fundamentais.
          O século XX, desse modo, é marcado pelo surgimento dos Estados Constitucionais, erigidos sobre o constitucionalismo democrático difundido no segundo pós-guerra, tendo por escopo a realização das promessas (ainda) não realizadas pelo Estado Social de Direito, intento que será possível por força do plus normativo agregado a essa nova ordem constitucional (STRECK, 2009, p. 37).

2.2 Do pós-positivismo como marco filosófico para uma nova compreensão do direito constitucional – o neoconstitucionalismo

          A decadência dos regimes autoritários em meados do século passado gerou importantes consequências no mundo do Direito, possibilitando o seu reencontro com a ética. Conforme descrito por Barroso (2009, p. 327), “ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido.”
          Assim, o último quarto do século XX marcou o declínio do positivismo jurídico[6], em virtude da derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, movimentos que, sob o manto da legalidade, cometeram uma das maiores barbáries da história ocidental[7].
          Daí em diante tem início na Europa uma onda pela redemocratização dos Estados, tendo como principal marco a Lei Fundamental de Bonn da Alemanha, de 1949. Antes disso, a redemocratização ocorreu também na Itália, em 1947, e posteriormente em Portugal, em 1976, e na Espanha, em 1978. No Brasil, o direito constitucional renasce juntamente ao Estado Democrático de Direito, com a promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988. Estes são os marcos históricos do neoconstitucionalismo[8] mundial e brasileiro, respectivamente.
          Esse novo direito constitucional tem como marco filosófico a superação do positivismo normativista kelseniano e o retorno da noção jusnaturalista[9] ao direito. Conforme salientado por Streck (2009, p. 7), “pós-positivismo deve ser entendido com o sentido de superação e não (mera) continuidade ou complementariedade”[10]. Assim, esse “ideário difuso” propõe uma (re)discussão de diversos pontos fundamentais da teoria geral do direito e, em particular, do direito constitucional, mais especificamente com relação à teoria dos direitos fundamentais e à hermenêutica constitucional.
          No que tange ao marco teórico, o neoconstitucionalismo operou mudanças na dogmática e hermenêutica jurídica convencionais. Segundo Barroso[11], três grandes transformações podem ser identificadas com esta compreensão do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.
          Nesse mesmo sentido, leciona Barcellos (2007, p. 2 e ss.), resumidamente, que as características específicas mais destacadas deste novo direito constitucional podem ser ordenadas em dois grupos: um que congrega elementos metodológico-formais e outro que reúne elementos materiais.  
          Sob o prisma metodológico-formal, o neoconstitucionalismo opera em três premissas fundamentais, a saber: (i) a normatividade da Constituição, isto é, o reconhecimento de que as normas constitucionais são dotadas de imperatividade/coercitividade; (ii) a superioridade da Constituição com relação às demais leis e atos normativos; e (iii) a centralidade da Carta no ordenamento jurídico, devendo ser concebida como um filtro da interpretação jurídica.
          Nesse aspecto, segundo a referida autora, inserem-se no âmbito do direito constitucional discussões acerca da eficácia jurídica dos princípios constitucionais, das possibilidades de controle das omissões inconstitucionais e da interpretação das normas infraconstitucionais à luz da Constituição Federal.
          Do ponto de vista material, o neoconstitucionalismo é caracterizado pelos seguintes elementos: (i) a incorporação expressa de valores (dignidade da pessoa humana) e opções políticas gerais (redução das desigualdades sociais) e específicas (a prestação de serviços de saúde, educação etc.) nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos específicos (colisão de normas constitucionais, v.g., liberdade de expressão e de informação e intimidade, honra e vida privada) e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional.
          Nesse sentido, muito antes de vincular a interpretação somente das normas constitucionais, o neoconstitucionalismo (e o pós-positivismo) marca a confluência de ideias despontadas no segundo pós-guerra com o fito de operar uma releitura da própria dogmática jurídica tradicional.
          Para o nosso contexto, e com o fito de melhor compreender as características deste novo direito constitucional, é importante que se acrescente os seguintes fundamentos, trazidos à lume por Barroso (2009, p. 249-250), quando afirma que

a doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática, na teoria da justiça e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a ética.
         
          Frise-se que a compreensão do neoconstitucionalismo, combinada à instituição de um Estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988), é de fundamental importância em um país de “modernidade tardia” como o Brasil. Isso se justifica porque o direito, de modo geral, interpretado à luz da Constituição, possui plena potencialidade de transformar a sociedade, uma vez que, nesse contexto, é sempre um instrumento para a realização das “promessas da modernidade”, decorrentes, direta ou indiretamente, da Lei Maior, notadamente de seu art. 3º (STRECK, 2009, p. 2).
          Portando, a discussão acerca da efetividade[12] das normas constitucionais deve-se aliar à compreensão do neoconstitucionalismo, a partir do seu marco filosófico (o pós-positivismo), sendo esse o ambiente propício e adequado para a discussão e realização da vontade constitucional, bem como para o desenvolvimento de um constitucionalismo dirigente e compromissado com o ideal de justiça social, meio pelo qual realizar-se-á o ideal de bem-estar (ainda) não concretizado no Brasil.
         
3 ALGUNS DELINEAMENTOS EM TORNO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

          Empreender o estudo do princípio da dignidade da pessoa humana no atual paradigma constitucional é tarefa imprescindível não só pela sua positivação implicar na inserção de valores suprapositivos no ordenamento jurídico, mas, sobretudo, em razão de seu caráter garantista.
          O tema, por si só, ocuparia o título de extenso estudo. Não objetivando maiores digressões, o referido princípio será aqui abordado tomando por base sua eficácia interpretativa e seu potencial garantista concernente ao núcleo do mínimo existencial.
          A Constituição abarca em seu texto uma diversidade de normas, que ora se traduzem em regras, ora em princípios. Quanto às regras, geralmente, não se vislumbram maiores problemas na sua aplicação, o que pode ser resolvido mediante mera subsunção dos fatos à norma, uma vez que traduzem-se em comandos objetivos, prescrições que expressam diretamente um preceito, uma proibição ou permissão (BARROSO, 2009, p. 206).
          Já com relação aos princípios, sobretudo os extraídos da Constituição, tal não ocorre, uma vez que figuram como enunciados dotados de conteúdo aberto e possuidores de grande carga axiológica. Entrando em rota de colisão, cabe ao intérprete solucionar o conflito com a correta ponderação, de modo a aplicar ambos, preservando seu núcleo mínimo essencial.
          Nesse prisma, diversos princípios constitucionais assumem função não só integrativa e subsidiária na aplicação do Direito, mas, sobretudo, dão unidade ao ordenamento e tomam posição destacada no sistema jurídico. Os princípios funcionam, portanto, como um mecanismo dinâmico na solução de normas constitucionais.
          Em vista de sua normatividade, os princípios não se situam no texto constitucional somente como um convite à atuação dos Poderes Públicos na concretização dos mandamentos constitucionais. A força normativa atribuída às normas constitucionais[13], por vezes consubstanciadas em princípios, pretende dar a máxima efetividade às mesmas, isto é, operar a conjugação do dever-ser normativo ao ser da realidade.
          Assim, ainda em conformidade ao pensamento de Barroso (2009, p. 329), pode-se dizer que os papéis desempenhados pelos princípios no ordenamento são: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.
          Assentadas essas bases, cumpre atentarmos para a importância da positivação do princípio da dignidade da pessoa humana[14] no ordenamento jurídico pátrio, no art. 1º, III, da CF/88. Conforme se depreende do texto constitucional, a dignidade da pessoa humana, além de ser matriz de diversos direitos fundamentais, foi alçada pelo constituinte originário a princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Por esse motivo, o referido princípio “constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional” (SARLET, 1998, p. 110), sendo, ainda, um traço marcante da incorporação do pós-positivismo[15].
          Afirma Piovesan (2010, p. 27) que “o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”.
          De forma peculiar, Bonavides (2001, p. 233) salienta que

toda a problemática do poder, toda a porfia de legitimação da autoridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados.

          Desse modo, segundo o citado autor, “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana” (2001, p. 233).
          No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana exerce diversas funções, dentre elas, destacadamente, a de demarcar a fundamentalidade dos direitos, operando determinante contribuição na identificação de outros direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados na Constituição Federal de 1988, ou dos tratados internacionais dos quais a República brasileira seja parte.
          O princípio pode ser visto também sob diferentes perspectivas. Com arrimo no ensinamento de Sarlet (1998), pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana é, simultaneamente, limite e tarefa do Estado. Como limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é direito que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, uma vez que, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado.
          No que tange à dignidade como tarefa do Estado, referido princípio, segundo o autor,

reclama que este [Estado] guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do estado ou da comunidade [...] (SARLET, 1998, p. 106).
                                  
          Dando prosseguimento ao estudo das múltiplas facetas do princípio da dignidade da pessoa humana, este pode ser visto ainda tanto pelo prisma abstrato (ou subjetivo), como pelo concreto (ou objetivo). Subjetivamente, dignidade se relaciona com a liberdade e os valores do espírito e, no plano concreto, diz respeito à existência de condições materiais de subsistência.
          É no plano objetivo que com maior intensidade se fala na garantia do mínimo existencial, que garante ao cidadão uma esfera intocável de garantias (dimensão negativa) e, por vezes, depende de prestações positivas do Estado para se ver preservado (dimensão positiva).
          Essa esfera intocável de direitos básicos envolve diversas garantias jusfundamentais, como, por exemplo, patamares mínimos de saúde, uma educação básica capaz de atender ao mínimo exigido em determinada sociedade, uma renda mínima que possibilite ao trabalhador adquirir os bens materiais e imateriais suficientes ao seu sustento, dentre outros.
          Nota-se, portanto, que a dignidade pode ser variável de acordo com as necessidades da sociedade na qual se vive. No entanto, uma premissa nos parece certa: a garantia do mínimo capaz de gerar uma existência digna aos cidadãos se reveste daqueles direitos básicos garantidos no ordenamento jurídico, direitos esses que, a depender das necessidades contextuais (objetivas e subjetivas), uma vez não garantidos ou efetivados, são passíveis de figurarem como objeto de uma demanda judicial, impondo aos entes federados o dever de prestação positiva[16].
          Conforme preleciona Barcellos (2002, p. 305), a compreensão de uma esfera intocável de garantias, no que tange aos elementos materiais de dignidade, é composta pelo mínimo existencial,

que consiste em um conjunto de prestações mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade. (...) Uma proposta de concretização de mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional brasileira, deverá incluir os direitos á educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e o acesso à justiça.
         
          Dessas lições se conclui que o mínimo existencial, além de assegurar a efetivação de direitos materialmente fundamentais, também abarca uma garantia de natureza instrumental (o direito de acesso à justiça).
          Assentadas essas bases substanciais acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, cumpre tecer alguns comentários sobre da sua eficácia exegética, isto é, do modo como o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como vetor interpretativo no exercício da atividade jurisdicional.
          No plano da eficácia interpretativa, os princípios podem, em alguns casos, assumir a função de condicionadores da atividade exegética, isto é, havendo a possibilidade de aplicação de duas normas ao mesmo caso concreto, o intérprete deve guiar-se pela que melhor atenda à vontade constitucional, tomando por base os postulados principiológicos.
          Desse modo, é inegável que, na atividade hermenêutica, o princípio basilar da dignidade da pessoa humana assume certa prevalência em relação às demais normas. Em diversas ocasiões nossos Tribunais Superiores julgaram casos de grande relevância tomando por base o postulado inscrito no art. 1º, inc. III, da CF/88.
          Em paradigmática decisão, o Min. Celso de Mello se manifestou da seguinte maneira:

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. (STF, ADPF n. 45 MC/PR, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 29.04.2004, publicado em 04.05.2004).

          Em outra oportunidade, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana como vetor interpretativo, o STF possibilitou o cumprimento de pena nos moldes da prisão domiciliar à condenada por tráfico ilícito de entorpecentes, portadora de doença grave, não obstante o regime de cumprimento não autorizar tal medida. Nos termos de decisão lavrada pelo Min. Rel. Celso de Mello,

a transferência de condenado não sujeito a regime aberto para cumprimento da pena em regime domiciliar é medida excepcional, que se apóia no postulado da dignidade da pessoa humana, o qual representa, considerada a centralidade desse princípio essencial, significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Concluiu-se que, na espécie, impor-se-ia a concessão do benefício da prisão domiciliar para efeito de cumprimento da pena, independentemente da modalidade de regime de execução penal, pois demonstrada, mediante perícia idônea, a impossibilidade de assistência e tratamento médicos adequados no estabelecimento penitenciário em que recolhida a sentenciada, sob pena de, caso negada a transferência pretendida pelo Ministério Público Federal, ora recorrente, expor-se a condenada a risco de morte. RHC provido para assegurar a ora paciente o direito ao cumprimento do restante de sua pena em regime de prisão domiciliar, devendo o juiz de direito da vara de execuções criminais adotar as medidas necessárias e as cautelas pertinentes ao cumprimento da presente decisão. (RHC n. 94.358/SC, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29/04/2008, destaques acrescentados).

          Mesmo diante da proeminência do princípio em questão no ordenamento jurídico, somente à luz do caso concreto, no entanto, poder-se-á dizer, com segurança, haver a prevalência da dignidade da pessoa humana sobre outro princípio, em casos de colisão entre eles, uma vez que tanto os direitos fundamentais como os princípios não são absolutos, havendo meios próprios e pertinentes utilizados na sua aplicação e limitação, quando necessária.
         
4 CONCLUSÃO

          Pelo exposto, importa reforçar que na atual quadra do direito constitucional, a dignidade da pessoa humana figura no núcleo dos direitos fundamentais e como fundamento destes, servindo de instrumento hábil para a realização de uma leitura ética das normas (infra)constitucionais, buscando a conformação de todo o ordenamento à Constituição[17].
          A inserção do referido princípio no texto constitucional vem a consolidar, conforme se observou, a doutrina pós-positivista, que resgata a conjugação entre o Direito e a ética e, ipso facto, marca a superação da doutrina positivista normativista. O pós-positivismo, então, mostra que a pureza do direito e a neutralidade do intérprete nem sempre atendem às necessidades sociais e prestam-se à concretização dos ideias de justiça.
          Deste modo, conclui-se, com arrimo em Piovesan (2010, p. 32) que o valor-guia da dignidade da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.

REFERÊNCIAS

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______. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, n. 15, jan./mar. 2007.

BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, t. III.

­­­­______. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

______. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, t. II.

______. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 58, p. 129-173, jan./mar. 2007.

______. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

­­­______. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009.


[1]           Conforme ensinamento de Dallari (1989, p. 240), “a liberdade, consagrada nas Constituições, não tinha chegado até àqueles que só possuíam sua força de trabalho”.
[2]           Nesse sentido, Coelho (2010, p. 202) observa que “era evidente que, mais cedo ou mais tarde, esse modelo, porque unilateral, esgotaria as suas possibilidades, o que efetivamente ocorreu, ensejando mudanças profundas no chamado Estado de Direito liberal-burguês, seja de maneira mais ou menos pacífica, na vertente das reformas negociadas, seja de forma violenta, na esteira das revoluções marxistas, como as que ocorreram na Rússia (1917) e na China (1949)”.
[3]           Em conformidade com o pensamento de Comparato (2010, p.66), “o reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização”.
[4]           Conforme Silva (1997, p.83), a Constituição de 1934, ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar.
[5]           Nas palavras de Barroso (2000, p. 20), a Constituição de 1934, “em uma fórmula de compromisso entre capital e trabalho, delineou o arcabouço formal de uma democracia social, que não se consumou”.
[6]           O positivismo jurídico operou a importação do positivismo filosófico ao Direito, buscando criar uma ciência jurídica baseada na realidade observável e não na especulação filosófica. Buscou, portanto, a separação entre direito e moral ou a valores transcendentes. Direito passa a ser norma, isto é, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa (BARROSO, 2009, p. 239-240).
[7]           Para uma melhor compreensão: BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, t. II, p. 24-27.
[8]           A expressão “neoconstitucionalismo” é de uso corrente na doutrina. Recebe essa denominação, precisamente, em razão do advento das constituições democráticas surgidas no segundo pós-guerra. Pode aparecer ainda sob outras denominações, como, por exemplo, novo direito constitucional, constitucionalismo contemporâneo, dentre outras.
[9]           Acerca da compreensão do jusnaturalismo e da inserção nos textos constitucionais de “normas” oriundas do direito natural, Sarlet (1998, p.103) ensina que “da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que – de forma direta ou indireta – consagra a idéia da dignidade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado”.
[10]          Tomando por base uma noção um pouco mais relativa, Barroso (2009, p. 248) sustenta que o pós-positivismo surge como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista, contestando o postulado positivista da separação ente Direito, moral e política
[11]          Conferir BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, n. 58, p. 129/173, jan.-mar. 2007.
[12]          A efetividade é a eficácia social da norma, consubstanciada na sua capacidade de aproximar, o quanto possível, o dever-ser normativo e o ser da realidade social (BARROSO, 2009, p. 254). Para uma melhor compreensão, conferir BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, t. III, p. 61-77.
[13]          Vale dizer, por oportuno, que a expressão “norma” mencionada neste trabalho baseia-se nas lições de Eros Grau, segundo o qual “a norma encontra-se, em estado de potência, involucrada no texto. Mas ela se encontra assim nele involucrada apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam (..) a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos textuais que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser). Interpreta-se também o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade – no momento histórico no qual se opera a interpretação – em cujo texto serão eles aplicados” (2009, p. 32).
[14]          Com o fito de diferenciar as expressões “dignidade da ‘pessoa’ humana” e “dignidade humana”, Sarlet (1998, p. 106) leciona que “a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, não sendo lícito confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana (da humanidade)”.
[15]          Conforme Piovesan (2010, p. 28) “sob o prisma histórico, a primazia jurídica do valor da dignidade humana é resposta à profunda crise sofrida pelo positivismo jurídico, associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha (...). Nesse contexto, ao final da Segunda Guerra Mundial, emerge a grande crítica e o repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinado à ótica meramente formal”.
[16]          Nesse sentido, conferir: STF, AgR-RE n. 271.286-8, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12.09.2000.
[17]          Barroso (2009, 363) denomina tal fenômeno como “constitucionalização do direito”, salientando que, no atual contexto, “a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esse fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados”. Assim, a “constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional”.